Da curadoria de dados ao combate aos vieses: como a área de pessoas passou a definir o comportamento dos algoritmos dentro das empresas.
A inteligência artificial já está tomando decisões dentro das empresas — e muita gente ainda não percebeu quem realmente a está ensinando. Sem perceber, o RH deixou de treinar apenas pessoas e passou a moldar o comportamento das máquinas.
O problema? Se esse treinamento for mal feito, o erro não será do algoritmo — será humano.
A grande ilusão: inteligência artificial não aprende sozinha
Existe um mito confortável no mercado corporativo: o de que a IA é neutra, objetiva e autônoma. Não é.
Algoritmos aprendem com dados históricos, critérios de decisão e feedback humano. Isso significa que toda inteligência artificial usada para recrutar, avaliar, promover, treinar ou demitir pessoas carrega, inevitavelmente:
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escolhas humanas,
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prioridades organizacionais,
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vieses culturais,
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decisões do passado.
É exatamente esse o ponto central do estudo “Humans and Machines at Work: Redefining Strategic Human Resource Management in the Era of Artificial Intelligence and Workforce Automation” (2024), que mostra como a IA reflete a forma como o trabalho humano foi estruturado antes dela. Se a empresa sempre promoveu um perfil específico, a IA aprende que esse é o “melhor”.
Se o histórico carrega desigualdade, o algoritmo escala a desigualdade.
O novo papel do RH: de gestor de pessoas a treinador de algoritmos
O estudo é direto: o RH se tornou um agente estratégico no desenvolvimento da inteligência artificial, mesmo quando não participa formalmente dos projetos de tecnologia.
Na prática, o RH “treina” a IA quando:
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estabelece critérios de performance e potencial,
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estrutura planos de carreira e competências,
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decide o que é sucesso, risco ou exceção.
Isso transforma o RH em algo novo: arquiteto da relação entre humanos e máquinas.
Não se trata mais apenas de políticas de pessoas. Trata-se de governança do comportamento algorítmico.
IA em treinamento corporativo: onde humanos realmente ensinam máquinas
A aplicação mais visível dessa mudança está em treinamento e desenvolvimento. A IA já é usada para:
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aprendizado adaptativo (conteúdo que muda conforme a performance),
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recomendações personalizadas de desenvolvimento,
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criação automática de cursos, testes e trilhas,
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análise contínua da evolução do colaborador.
Mas há um detalhe essencial: a IA não decide sozinha o que é aprender bem.
Ela aprende com:
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modelos de competência criados por humanos,
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avaliações definidas por RH e líderes,
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feedbacks estruturados (ou mal estruturados).
Quando o RH define o que medir, ele define o que a IA valoriza.
Quando o treinamento vira dado — e o dado vira poder
O estudo acadêmico aponta uma virada silenciosa: aprendizado, performance e trabalho estão se fundindo em um único fluxo de dados.
Isso significa que:
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cada interação vira insumo para o algoritmo,
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cada avaliação alimenta decisões futuras,
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cada trilha de desenvolvimento reforça um modelo de “bom profissional”.
Sem governança, o risco é claro:
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repetir erros históricos,
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cristalizar vieses,
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automatizar injustiças em escala.
Por isso, o RH deixa de ser apenas executor e passa a ser curador ético e estratégico dos dados humanos.
O erro mais perigoso: deixar a IA “fora” do RH
O artigo acadêmico alerta: empresas que tratam IA apenas como projeto de TI tendem a cometer três erros graves:
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Usar IA só para reduzir custo, não para desenvolver pessoas
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Ignorar impactos culturais e psicológicos
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Descobrir tarde demais problemas legais e reputacionais
Quando isso acontece, o RH é chamado apenas para “consertar o estrago”. Mas aí o algoritmo já foi treinado.
RH, ética e viés: quem responde quando o algoritmo erra?
Essa é a pergunta que começa a aparecer em conselhos e tribunais.
Quando uma IA:
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discrimina,
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exclui,
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prejudica grupos,
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toma decisões injustificáveis,
A empresa precisa responder.
E o estudo deixa claro: a responsabilidade não é só técnica — é organizacional.
O RH passa a ter um papel central em:
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definir limites,
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criar critérios transparentes,
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estabelecer processos de revisão humana,
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garantir que a IA desenvolva pessoas, e não apenas números.
O futuro do trabalho é humano treinando máquina — todos os dias
O futuro não será “humanos versus máquinas”. Será humanos treinando máquinas continuamente — e sendo influenciados por elas em troca.
Nesse cenário, o RH deixa de ser coadjuvante e assume um papel estratégico:
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traduz valores humanos em lógica algorítmica,
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transforma cultura em critérios,
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transforma aprendizado em inteligência organizacional.
Quem entender isso agora não apenas usará IA melhor. Vai liderar a forma como ela aprende.
