Entenda a legislação, a jurisprudência do TST e aprenda a gerenciar os casos mais complexos na sua folha de pagamento.

A tela do sistema de folha pisca, a data de fechamento se aproxima e a mesma ansiedade de sempre aperta o peito. Mais um colaborador com uma lista interminável de descontos e o cálculo final simplesmente não fecha: a soma ultrapassa o bom senso e ameaça zerar o pagamento de quem trabalhou o mês inteiro.

Este cenário é o pesadelo de todo profissional de Departamento Pessoal. Descontar tudo e arriscar um processo trabalhista? Ou intervir manualmente, correndo o risco de cometer um erro que pode custar caro à empresa? Se você vive essa tensão, este guia foi feito para te dar a segurança e a clareza que você precisa.

Entenda a legislação, a jurisprudência do TST e aprenda a gerenciar os casos mais complexos na sua folha de pagamento

Para dominar este tema, precisamos ir além do “ouvi dizer” e nos basear nos pilares que regem o assunto: a CLT e as decisões consolidadas do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

A base de tudo: O que o artigo 462 da CLT realmente permite descontar?

O ponto de partida é o princípio da irredutibilidade e proteção salarial. A regra geral, definida pelo DECRETO-LEI Nº 5.452, é clara: ao empregador é vedado efetuar qualquer desconto nos salários do empregado.

No entanto, a própria lei estabelece as exceções. A empresa pode, sim, realizar descontos quando estes resultarem de:

  • Adiantamentos salariais: O popular “vale”, que é uma antecipação do pagamento.
  • Dispositivos de lei: São os descontos obrigatórios, como a contribuição ao INSS, o Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) e o cumprimento de ordens judiciais, como a pensão alimentícia.
  • Contratos coletivos: Descontos previstos em Convenções ou Acordos Coletivos de Trabalho, como contribuições sindicais.

Além disso, a lei permite o desconto por danos causados pelo empregado, mas com uma condição: essa possibilidade deve estar previamente acordada no contrato de trabalho ou o dano deve ter sido intencional (doloso).

Além da lei: Gerenciando os descontos autorizados e a importância da documentação

E quanto aos benefícios? Plano de saúde, convênios de farmácia, seguro de vida? Aqui entra a jurisprudência. A Súmula nº 342 do TST autoriza esses descontos, desde que cumpram um requisito de ouro: a autorização prévia e por escrito do empregado.

Atenção: Essa autorização não pode ser coagida. Ela deve ser um ato de livre e espontânea vontade do colaborador para usufruir de um benefício oferecido. Sem esse documento, o desconto é considerado ilegal.

A armadilha do “empréstimo amigo”: Por que a Súmula 18 do TST é um alerta vermelho para o DP

Imagine a cena: um gestor bem-intencionado empresta um valor pessoal a um colaborador em apuros, combinando o desconto direto na folha ou na rescisão. Parece uma solução simples, mas é uma armadilha jurídica perigosa.

A Súmula nº 18 do TST é taxativa ao dizer que a compensação no salário ou na rescisão está restrita a dívidas de natureza trabalhista. Um empréstimo pessoal é uma dívida cível. Tentar descontá-lo na folha é ilegal e pode ser revertido na Justiça do Trabalho, obrigando a empresa a devolver o valor.

Ação recomendada: Se essa prática existe na sua empresa, ela precisa ser abolida imediatamente. A cobrança de dívidas cíveis deve ser feita por outros meios, jamais via folha de pagamento.

O número decisivo: Qual é o limite de 70% e a garantia dos 30% para o trabalhador?

Chegamos ao ponto central. Embora não exista uma lei que crave um percentual exato, o entendimento pacificado pelos tribunais, que na prática tem força de regra, estabelece um limite claro.

Com base na Orientação Jurisprudencial (OJ) nº 18 da Seção de Dissídios Coletivos (SDC) do TST, o total de descontos autorizados pelo empregado não pode ser superior a 70% do seu salário base.

Essa limitação tem um propósito fundamental: garantir o mínimo existencial. A consequência direta é que o trabalhador deve, obrigatoriamente, receber pelo menos 30% do seu salário em dinheiro, para garantir sua subsistência e de sua família. Este é o chamado princípio do salário digno.

Guia prático: O que fazer quando os descontos estouram o limite?

A teoria é clara. Mas e na prática? O que você faz quando o sistema aponta que os descontos de um funcionário somaram 95% do seu salário?

A solução exige uma gestão manual e hierarquizada. Siga este passo a passo para tomar a decisão correta e segura:

  1. Priorize os Invioláveis: Os primeiros descontos a serem garantidos são os obrigatórios por lei: INSS, IRRF e, acima de tudo, a Pensão Alimentícia, por seu caráter alimentar.
  2. Analise os Contratuais: Em seguida, vêm os descontos com força de contrato, como o empréstimo consignado, que possui legislação própria.
  3. Gerencie os Benefícios: Por último, os descontos autorizados para benefícios, como convênios de farmácia, planos de saúde, etc.

Quando a soma estourar os 70%, comece a suspender ou reprogramar os descontos da última categoria para o mês seguinte. Se ainda assim o limite for ultrapassado, reavalie os descontos da segunda categoria, sempre documentando cada passo.

A conversa com o colaborador: Como comunicar o problema sem gerar crise

Após ajustar a folha, o passo mais importante é a comunicação. Chame o colaborador para uma conversa transparente. Use uma abordagem direta e empática:

  • “Olá, [Nome do Colaborador]. Chamei você para conversarmos sobre sua folha de pagamento deste mês. Notei que o total de compromissos que você assumiu (consignado, convênios, etc.) está muito alto.”
  • “Para garantir que você receba um valor mínimo para suas despesas, como a legislação nos orienta, o desconto do [Convênio de Farmácia, por exemplo] no valor de R$ X será transferido para o seu próximo pagamento.”
  • “É muito importante que você se organize, pois sua folha está com muitos descontos. Se precisar de alguma orientação, estamos à disposição.”

De operador de folha a gestor de risco estratégico

Dominar as regras de desconto em folha transforma o profissional de DP. Você deixa de ser apenas um operador de sistema para se tornar um gestor de risco estratégico, que protege a empresa de passivos trabalhistas e, ao mesmo tempo, garante o tratamento justo e digno aos colaboradores.

Lembre-se dos pilares: o Art. 462 da CLT é a base, as Súmulas 18 e 342 do TST são alertas críticos, e a regra dos 70/30 é seu guia para o fechamento seguro e tranquilo que você merece.